Psicopatologia Fundamental e Formação do Psicólogo
Embora não seja objetivo deste texto participar do debate atual sobre as diretrizes curriculares que norteiam a formação do psicólogo, tomaremos o estudo do conhecimento (logos) da alma (psyché), o da psicologia, como exemplo de um campo onde a Psicopatologia Fundamental teria uma palavra a dizer.
A psicologia, como ciência, foi construída ao longo da história como uma tentativa de compreensão de um fenômeno social novo. O “fenômeno novo” é o sentimento de “eu”, cujas origens no ocidente encontram-se na revolução burguesa, que transformou a organização feudal, e instaurou uma nova forma de organização social. Isso significa que a psicologia surge como resposta a um movimento político historicamente datado, e que, como toda ciência emergente, é tributária da ideologia que permitiu o seu aparecimento. (Ceccarelli, 2002) Essa mesma ideologia apresenta distintas leituras do “fenômeno novo”, do “eu”, leituras essas que sustentam as diferentes epistemologias que definem tanto o normal como o patológico. Todo ensino de psicologia, em suas mais variadas áreas de atuação, apóia-se, ainda que implicitamente, em uma leitura do pathos. Essa, por sua vez, sustenta a epistemologia que define a noção de sujeito a qual, consequentemente, determina a prática e orienta a clínica: psicopatologia clínica, psicopatologia do trabalho, das relações empresariais, do desenvolvimento…
Não obstante, a complexidade intrínseca do psicopatológico indica que o objeto de trabalho da psicologia – as paixões que constituem o sujeito – não é apreensível por um discurso único e muito menos redutível à uma forma discursiva que o unifique. Daí a importância, na perspectiva de Psicopatologia Fundamental, que o estudante de psicologia tenha contato com a multiplicidade das “psicopatologias” – fenomenológica, psicanalítica, existencialista, comportamental, humanista, centrada as e outras tantas – para que ele se dê conta que a psicopatologia que sustenta a prática psicológica constitui um vasto território habitado por diferentes perspectivas epistemológicas com metodologias próprias e irredutíveis. Cada corrente teórica da psicologia propõe, dentro do referencial que lhe é próprio, possíveis apreensões do pathos que traduzem diferentes leituras do fenômeno observado – diferentes leituras do real – gerando diferentes construções da realidade.
A Psicopatologia Fundamental sugere que o estudo da psicopatologia no curso de psicologia deveria abordar os vários discursos sobre o pathos. Uma aula ideal convocaria psicopatólogos de diferentes filiações onde, a partir de um determinado fenômeno psíquico, cada teoria da polis psicopatológica tivesse direito à palavra. Teríamos, neste caso, um exercício legítimo da transdisciplinaridade tal como a entende a Psicopatologia Fundamental: uma confrontação de modelos onde aquilo que pode parecer óbvio para um, seria motivo de perguntas para outro. Além disto, tal confrontação permitiria mostrar que tanto a nossa prática, quando nossa escuta, são determinadas pelo modelo que elegemos.
Um exemplo: tanto autores da Escola Inglesa (Khan, 1979; McDougall, 1972, 1987), quanto da Americana, (Stoller, 1975, 1984; Kernberg, 1975, 1988), relatam casos clínicos de perversão trabalhados em análise com êxito. Para estes autores, a dificuldade com o perverso é suportar sua monotonia discursiva, o que requer do analista uma disposição particular para acompanhar o sujeito na repetição de sua pesquisa sexual infantil e, finalmente, introduzí-lo no mundo subjetivo de forma não ameaçadora. Já para a Escola Francesa de Jacques Lacan (Lacan, 1966, 1986) a perversão, vista como estrutura, resiste à psicanálise e o perverso não é analisável.
Ampliando a questão teríamos outro exemplo ainda mais radical: em agosto de 2004 ocorreu em Belo Horizonte o XIII Fórum Internacional de Psicanálise organizado pelo Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. O tema do Fórum foi “As múltiplas faces da perversão”. Inspirado por ele, organizei na PUC-MG um debate sobre a perversão para o qual convidei colegas das diferentes linhas da psicologia. O resultado foi a total falta de consenso entre os debatedores sobre a definição de perversão, sua escuta e condução clínica. Ora, do ponto de vista epistemológico isso em nada nos surpreende pois, como já disse, campos diferentes, cada qual com métodos, procedimentos e objetivos próprios dificilmente se comunicam. Mas para os alunos em formação o resultado foi angustiante. Ponderaram, e com razão, que para o sujeito que procura ajuda, sujeito esse que desconhece as correntes da psicologia, seu “futuro psíquico” estaria diretamente ligado à linha seguida pelo profissional que ele elegeu. Como resolver este impasse?
A pergunta que fica é: existe uma posição, uma leitura do fenômeno, mais verdadeira do que a outra, ou devemos nos perguntar sobre os limites da teoria que norteia nossa escuta? Ou ainda: existe um modelo mais verdadeiro que outro, ou é a nossa transferência que determina nossas escolhas teórico-clínicas? (Ceccarelli, 1999) Questionar a certeza sobre a qual determinada enunciação repousa é o que caracteriza o discurso científico.
Muitas vezes devido aos complexos inconscientes que são despertados em nós pela fala daquele que está em nossa frente, apressamo-nos a buscar respostas que confortem nossas angústias. Para evitar isso, devemos estar atentos às formas discursivas que apresentam respostas para tudo e, ao mesmo tempo, não suportam críticas: quando os conceitos teóricos transformam-se em dogmas, o discurso transforma-se em religião, e seus pressupostos em leis. (Religião do latim “re-ligare” religar com Deus, ou com aquele que ditou, ou escreveu, a teoria.) Temos, neste caso, o dogmatismo onde qualquer atividade crítica é severamente punida. Não podemos nos esquecer que a dimensão imaginária da transferência pode transformar uma teoria em Verdade incontestável.
É neste sentido – cabe repetir – que as diversas leituras do fenômeno psíquico devem ser reconhecidas como possíveis. Sem este reconhecimento, nossa prática corre o risco de transformar-se em uma prática perversa no sentido empregado por Freud nos 3 Ensaios: uma fixação de uma pulsão sexual em uma única forma de satisfação.
http://ceccarelli.psc.br/pt/?page_id=179
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