quarta-feira, 4 de setembro de 2013

O poder de uma surpresa...


Era mais uma sexta em meio às tantas outras daquele mês. Esperei, pacientemente, ela secar cada fio de cabelo e se vestir para mais um expediente monótono de trabalho.

Era mais uma sexta em meio às tantas outras daquele mês. Esperei, pacientemente, ela secar cada fio de cabelo e se vestir para mais um expediente monótono de trabalho. Fingi que dormia como uma pedra, acalmei a respiração ansiosa e forcei as pálpebras com força, pois precisava manter o disfarce e não queria, por nada no mundo, estragar a surpresa com muita antecedência planejada. Assim que ouvi a porta de saída sendo fechada, corri para arrumar a mala dela. Ela ainda não sabia, mas naquela noite, diferente das últimas mil, iríamos dormir no Chile, em Santiago. Confesso que fiquei meio confuso diante do armário transbordante, dos tantos vestidos parecidos e dos incontáveis pares de sapato, mas consegui, com auxílio da memória, lembrar das infinitas combinações que já havia visto ela trajar sorridente e, modestamente, acho que reuni as roupas necessárias. Propositalmente, só levei as calcinhas de pouco tecido, afinal, queria que os próximos dias fossem especiais. Além de roupas, na mala dela coloquei algumas poesias inéditas que havia feito para reinventar sorrisos, balas do tipo que ela teima em acabar ainda no trailer do filme e uma máquina fotográfica analógica, que ela vinha paquerando há tempos. Não parei por ai: junto com os itens de banho, coloquei um óleo de massagem e nele, uma etiqueta dizendo: vale-massagem.
Por volta das quatorze horas, mandei uma mensagem dizendo que naquele dia a buscaria para jantarmos. Ela me perguntou se comemoraríamos algo e eu, em tom falsamente desanimado, apenas disse que conheceríamos o recém inaugurado restaurante de um amigo. O tempo parou naquela tarde. Tentei ler algo, mas não tinha concentração suficiente nem para ler um mísero gibi. Tentei ver TV, mas as únicas imagens que detinham minha atenção eram aquelas que eu mesmo roteirizava, pensando nos momentos que viveríamos ao som do nosso portunhol. Tentei dormir, mas o coração batia muito além do peito. Depois de horas vendo o ponteiro engatinhar, enfim saí de casa para buscá-la. Estava vestindo aquela jaqueta de couro que a deixava com tesão e claro, cheirando o mesmo perfume que usei quando nos conhecemos naquela boteco que insistia em rodar. Parei em fila dupla, afinal, sentia-me imune à dor das multas e só pensava na mutação da cara dela quando ela descobrisse meu plano.
Ela entrou na carro, tocou meus lábios e logo reclamou do chefe carrasco. Eu disse que tudo ia ficar bem, coloquei o som que sempre a faz dançar e com a mão na coxa dela, consegui fazê-la mudar de assuntou, ou melhor, esquecer o antigo. Ela, não sei se por desatenção ou por falta de noção geográfica, nem percebeu que nos aproximávamos do aeroporto e eu, fazia de tudo para distraí-la mostrando fotos no Instagram. Só quando já havia estacionado o carro dentro do aeroporto, ela perguntou o motivo de estarmos estávamos ali e eu, disse que o restaurante era lá dentro. Dessa vez fui salvo pela ingenuidade dela, que entrou em Congonhas como quem estava entrando na praça de alimentação de um shopping qualquer. Segui em direção à área dos restaurantes e logo fiz cara de quem confundiu a data de inauguração. Pedi desculpas. Ela fez cara de frustração. Então sugeri que entupíssemos algumas artérias no MC Donald´s mesmo e ela topou. Anotei o pedido dela, disse para ela esperar sentada e fui buscar os lanches. Sorri para simpática moça do caixa e a convenci a me dar uma caixa de sanduíche extra, para dentro dela colocar a passagem que dizia: São Paulo – Santiago.
Coloquei a bandeja com os lanches na frente dela e quase morri de ansiedade quando percebi que ela comeria os nuggets primeiro, mas esperei, quase sem aguentar, ela mergulhar cada pedaço de frango no barbecue. Assim que ela pegou a caixa leve, sem Big Mac dentro, fez cara de quem não estava entendendo nada. Ela franziu a sobrancelha e ao abrir a caixa, fez um minuto de silêncio. O minuto mais longo que vivi até aqui. Ela me olhou e eu sorri com cara de quem estava aprontado. Ela olhou novamente para o interior da caixa e com uma fina película de água já visível nos olhos, disse-me que me amava.
A viagem foi linda, de verdade, mas nem o céu estupidamente azul de Santiago conseguiu superar o sorriso que ela me deu quando abriu a caixa. Nada foi tão lindo quanto a cara que ela fez quando esbarrou com a surpresa. Nem a poesia nativa do Neruda conseguiu me emocionar tanto quanto as caras que ela fez ao desfazer a mala e ao descobrir que meu interesse maior não era conhecer um novo território e sim, redescobrir cada curva do corpo dela. Santiago era só mais uma desculpa para vê-la feliz.

Ricardo Coiro.