sábado, 10 de maio de 2014

O OLHAR EM RENÉ MAGRITTE

O OLHAR EM RENÉ MAGRITTE




RENÉ MAGRITTE: PINTOR-ESCRITOR-CRÍTICO

 Ilza Matias de Sousa
Pós-doutoramento – UFRN

Maria Eliane Souza da Silva
Doutoranda - PPGEL/UFRN



R. Magritte - O Libertador

A história da civilização ocidental poderia ser designada como a história do olho, entendida como um olhar panóptico, policial, controlador, o olhar da Instituição. Neste, configurar-se-ia o ideal apolíneo, que dá lugar à busca da perfeição do ver, através de tecnologias e das artes, encontrando expressão maior na filosofia como uma espécie de metafísica do olho, dos “olhos” do logos, ou da razão sempre desperta, cujo poder de visibilidade teria um análogo na concepção solar, da qual viriam as noções de esclarecimento e iluminismo modernas, colocando o conhecimento como uma aspiração mais elevada e acima das necessidades do homem comum. Nesse sentido, podemos estimar um paralelo entre o ver, o visível com o logos disseminador da luz, de tal forma que se supere o limite do vislumbre, do alumiar frouxamente, do mero entrever.

 A tradição clássica, assim, ocupou-se em traçar raias no espectro do olhar, do ver, e passou a conceber equivalências nas estruturas cognitivas da mente, nos fatores de inteligibilidade e legibilidade. Instaurado o paradigma ótico platônico, a partir da posição da acrópole grega, este será posto em circulação e incorporado na dimensão da polis, cujos aspectos legitimadores incluiriam a sacralização sígnica, no sentido de exercer um ritual regulador dos signos da visão no modelo de cultura e de artes, atualizado na paideia. Isto promoveria a serenidade e estaticidade da contemplação, provocando embevecimento e comunhão entre o objeto contemplado e o contemplante.

 A vista se esforça por absorver a paisagem que se entretece nos tecidos sociais, o que, para nós, suscitaria, na perspectiva da crítica nietzschiana do século XIX, uma moral de rebanho, revestida na figura da castração e na cena da transgressão da cegueira de Édipo. Dentro desse espaço escópico, concebe-se o ato de ver como ato moral, responsável por significados determinantes do mundo sensível, devendo, assim, se direcionar a visão para a “boa” conduta, para a vergonha e a justa medida. Nietzsche (2001, p.47), ao afirmar que “as morais nada mais são que uma linguagem semiológica dos afetos”, reinterpreta para a modernidade europeia o enfoque platônico de uma educação dos sentidos, que se fundamenta na conformação e conformidade a um fim - a sublimação do mundo sensorial.


Observaremos como a matriz desse paradigma ótico afeta toda a história do ocidente, efetuando-se nela uma arqueologia da imagem que tem na cena platônica do mito da caverna o princípio que aciona o próprio “cinema” da humanidade, implicando afecções, paixões, traições/traduções das imagens que enganariam, criando ilusões, na aparência de seu desencadeamento e existência autônoma, pondo em risco a verdade. Em Platão, evidenciam-se simultaneamente o fascínio e o horror regentes do poder do simulacro.

A finalidade racional e a destinação moral do olhar tornam-se comuns ao mundo de representações do cristianismo, até que o niilismo intempestivo e a morte de Deus dessem lugar ao estremecimento do olhar, diante da vertigem dos estados dionisíacos do caos. O homem teórico, não mais controlado por sua natureza contemplativa, desse modo, libertaria os olhos do olhar habitual, adequado ao objeto, cerceado por uma visibilidade delimitada, para criar o seu próprio campo do visível, não cessando de interrogar o olhar. Como colocaria Merleau-Ponty (1979), o olho não se mantém ocupado em ver se vê e a visão nunca está imóvel. Tem-se todo o tempo metamorfoses do olhar.
 Na modernidade construída no séc. XX, dentro dessa discussão, surge a obra romanesca de George Bataille, História do olho (2003), que produzirá um evento de linguagem, do qual emerge a contiguidade com o pictórico, introduzindo, como se refere Schollhammer (1996, p.6), “o ato de tirar o olho da cabeça, cortando a relação privilegiada da visão com o sentido da razão e do espírito” - a desocularização da visão. Uma experiência que atinge o abismo do Mal e imprimirá à figura do olho um tratamento de signo em transe e instrumento perfurante.

Conforme a discussão do estudioso mencionado (Ib.), pela violência e intensidade desse processo batailliano perpassa a “metamorfose – do ‘olho que vê’ para o ‘olho (desocularizado) visto” (Ib.), por um lado, desconstituindo a noção mimética do campo do olhar; por outro, remetendo à elipse ou ao ocultamento que sofreu a cegueira em relação ao domínio da visão, levando a problemáticas trágicas como a da cegueira sacrificial, ou à crise das construções transcendentais do ocular na figura do Olho abscôndito de Deus.
 Discutindo a questão do olho, proposta por Derrida, em Memória dos cegos, os autores Luiz Fernando Ferreira de Sá e Miriam Piedade Mansur (1) mostram que o filósofo procede a uma operação de memória visual, segundo suas palavras, à qual sucede o “cancelamento do olho físico e a inserção de um “eu que olha” (eu/olho) numa “escuridão visível” (p.2), produzindo um oxímoro que põe em confronto luminoso/obscuro e coloca um paradoxo: obscura claridade. Para finalmente, chegarem à conclusão, afirmam os dois, de que, em John Milton (Paradise Lost), ocorrem os dois tipos de cegueira elencados por Derrida – a sacrificial e a transcendental, promovendo, entretanto, o autor inglês “o estabelecimento do olho interior” (Ib., p.16) como “uma metonímia do paraíso” (Ib.), deslocando o transcendental para a imanência da experiência interior.

 Em Bataille, confirmaríamos a presença do outro tipo que seria a cegueira sacrificial, aludindo-se à tipologia derridiana, pois seu intenso movimento transgressivo atinge em cheio o olho transcendental, “reintroduzindo-o no corpo duma maneira que provoca uma reação de horror e êxtase orgiástico” (SCHOLLHAMMER, op. cit., p.6).


Na pintura O libertador (1947), Magritte (2)  (PAQUET, 2000, p.83) apresenta o corpo de um homem sentado, segurando uma bengala com uma mala ao lado, como se à espera de um transporte para viajar, sua parte do tronco até a cabeça coberta por uma espécie de cartaz que contém elementos enigmáticos, uma chave, um cálice, um pássaro e um cachimbo. Ao deslocar os olhos para a figura de um candelabro, o pintor introduz um riso irônico no que seria um espaço cênico da cegueira transcendental, liberando um trabalho de superfícies estranhadas. 

Assim, a desconstrução do olho castrado no discurso romanesco de Bataille corresponderá à de Magritte na pintura, ambos, na virada, poderíamos precisar, da chamada revolução surrealista, na Europa. Na década de 20, o surrealismo de Magritte surge da explosão do signo pictórico na perspectiva de uma crise semiótica e semiológica, já que assume conexões imprevisíveis pelas regras da pintura, permutando, comutando com outros signos e linguagens, para celebrar o impensado e estabelecer singularidades com os elementos que não entrariam ainda na experiência assimilável da pintura, até então.

 Ele operaria com os elementos pictóricos como um gramático (ou um linguista) que pusesse em crise a escrita alfabética para fazer emergir outras possibilidades de escrituras inesperadas, insuspeitas, correspondendo este ato igualmente a uma desorganização sígnica que estabelece conflitos e paradoxos entre a palavra e a visão. E esse procedimento em Magritte o faz desencadear não só a discussão sobre os limites do seu campo visual, sobre o cogito do olhar, mas também práticas interrogativas de experiências que colocam em tensão a materialidade da pintura, em face à recusa da forma transcendente. 



R. Magritte - Golconda

Nessa atividade que reúne as dimensões substantivas do pintor-escritor-crítico, Magritte situa outros limiares, ultrapassando as relações convencionais entre o quadro, o pintor e o espectador, encaminhando sua produção na direção de quase-experiências do fora, que, para Foucault (3), neste caso, se apresentariam sob o engendramento de singularidades selvagens, entendendo-se por isso as singularidades que resistiriam ao institucional e se dariam como algo que ainda não entrou na experiência.

Dá-se em meio à instauração dessa experiência do fora(4), que em Magritte traça possibilidades de sua inscrição como corpo-inscrito e escrito, a configuração do pintor-escritor-crítico, disseminando-se em várias margens e incluindo-se num debate filosófico ontológico capaz de, na cena pictória, submeter ao questionamento a natureza ontológica de uma homogeneidade pressuposta do objeto pictórico, através das tensões, conjunções e disjunções com a cena linguística, anexando títulos ou frases nominais e enunciados raros, no meio pictórico, para propiciar a sensação do abismo. Magritte acaba por elaborar uma espécie de gramatologia do mal linguístico e do mal pictórico(5), que trará para a letra e a pintura uma combinação inusitada de montagem e colagem, dentro dos princípios cubistas.

Os elementos pictóricos vão concorrer com enunciados lingüísticos, diante do que se formularia uma problemática do salto de uma superfície à outra, deleuzianamente falando, precipitando os corpos e os signos, destruindo significações normatizadoras. Além de enervar os tecidos da co-presença sígnica, ainda recorrendo a Deleuze (6) , o pintor-escritor-crítico produz deslizamentos “do senso e do não senso” (Ib., 1974, p.143), o que faz proliferar o humor e as singularidades de superfícies nômades, dando lugar à pintura como acontecimento do novo e não como reprodução de códigos estáticos.

Essa experiência imprime uma opacidade conceitual, desarmando os olhares prévios, indicadores de consensos sociais e culturais. Não se pode articular, aí, um olhar do logos, quando, por exemplo, deparamo-nos, entre outros quadros, com Golconda(1953) em que homens pairam no ar, quebrando a lei da gravidade, abrindo a possibilidade de “caminhar pelo céu na terra”, qual assinala a proposição do insólito e do anômalo na legenda aposta ao quadro (PAQET, op. cit., p.84). Corpos que flutuam em Golconda, olhos que se erotizam como seios, em Violação (1934), compõem um rosto de mulher com uma sintaxe de órgãos do prazer e do desejo, mas, antes, para destruir, pelo humor, qualquer redução à unidade e à identidade, mediante uma estética da violação do corpóreo e do espaço-tempo que desordena as regras pictóricas e a metafísica da pintura (Ib., p.29). O olhar do espectador entra no regime do mise en abîme.




R. Magritte - Violação



O desequilíbrio do olhar “naturalizado” dos espectadores arrasta-os para inquietações diante do que veem na superfície da tela/texto, desestabilizando a representação da imagem dogmática do pensamento, destituindo a imagem das amarras da perspectiva mimética e realista, desvirtuando-a, desnaturalizando-a. Se levarmos em conta as considerações críticas de Gilles Deleuze sobre a construção da imagem do pensamento e os processos cristalizadores de similitude, em Diferença e repetição (1988), diríamos que Magritte concebe um pensamento da diferença e da multiplicidade.


 A provocação do olho, da desocularização, a problemática da cegueira sacrificial e da transcendental, da luz e do resto escuro confrontam-nos com a questão da memória do objeto, intensificam a obscenidade da atuação das polaridades legibilidade/ ilegibilidade, da visibilidade/invisibilidade na cena pictórica ou na cena linguística. Em Magritte, nada pode se constituir em ancoragem, seja no âmbito do plano temático, do plano ótico, seja no âmbito do linguístico. O visto e o não visto e o dito e o não dito subvertem a ordem empírica, superando a dicotomia entre o empírico e o não-empírico. 


R. Magritte - Os Amantes



Criam-se corpos que escapam todo tempo. Em Os amantes (1928), as cabeças encapuzadas confundem o plano ótico, no limiar entre o visível e o invisível, acentuando os pontos cegos da incognoscibilidade, dando lugar ao processo de perda parcial do figurativo, enquanto roupas se insinuam no sombreamento da paisagem, tornando o Eros, intratável, na iminência de uma decapitação (PAQUET, op. cit., p.64).


Esse procedimento magrittiano transmuta o corpo sígnico tomado como orgânico, passando a relacionar imagem e palavra, letra e traço, pensamento e pintura, num turbilhamento tal, que os extrai de sua organicidade, na busca de construir para si outras corporeidades, corpos sem órgãos, no sentido que é atribuído por Deleuze (7)a essa expressão.


R.Magritte - O Prazer


Tanto Deleuze como Magritte desarticulam o regime orgânico do pensamento, do signo, da imagem, da pintura e da linguagem. Desorganização que transforma corpos “plenos” em corpos esvaziados, como o corpo policial do social, num tratamento que densifica e intensifica o prazer e a perversão do pictórico, qual se mostra em Prazer(1927), em que Magritte é implacável, mostrando uma menina dando dentadas num pássaro vivo, do qual escorre sangue. Segundo Paquet (Op. cit., p.75), nesse quadro o pintor “intensifica o seu prazer pictórico”, dizendo ainda que “não é tanto o elemento cruel das crianças, mas mais o desejo do que é inacreditável, que o interessa. Nesse aspecto, Magritte traria para a tela a fórmula de Klee, citada por Deleuze (2007): “não apresentar o visível, mas tornar visível”. Acrescenta Deleuze: “A tarefa da pintura é definida como a tentativa de tornar visíveis forças não visíveis” (Ib., p. 62).



R. Magritte - A Máscara Vazia

Magritte insufla energias vitais e um humor incomum na seriedade e estaticidade da – se assim podemos nomear – Grande Pintura, fazendo emergir o poder criador da desordem, da incongruência, poder esse recuperador de uma ludicidade anárquica que associa a sua pintura ao devir, ao reino da criança heraclitiana, jogando ao gamão o reino do tempo e da criação. A máscara vazia (1928) traz esse jogo, essa anarquia da superfície, realiza o fort-da freudiano do olhar (PAQUET, op. cit., p.70). O jogo de ausência/presença da criança heraclitiana, em que produzir uma imagem é também destruir a imagem. Ou, considerando-se a discussão de Didi-Huberman (1998), nesse quadro podemos surpreender no exercício de olhar magrittiano, a relação entre o que olha e o olhado. E, mesmo que se dê nisso um gozo perverso e cruel, o pintor enuncia a respeito dessa obra: “As palavras que servem para caracterizar dois objetos diferentes não revelam por si o que distingue um objeto do outro”: ciel, rideau, corps humain (ou forêt), façade de Maison (Op.cit., p.70). O vazio da máscara depõe qualquer hermenêutica.


R. Magritte - Isto não é uma maçã





R. Magritte - A Traição das Imagens


Os quadros Isto não é uma maçã (1964) e A traição das imagens (1928-29), no qual apõe a legenda “Isto não é um cachimbo” (Op. cit., p.9), são atravessados por golpes contra o sempre idêntico, contra o realismo mimético, demovendo palavras, coisas e imagens de uma pretensa clarividência e da verificação da verdade. A legenda para o segundo quadro põe em foco a dimensão da potência do falso: “O famoso capricho? Já fui o suficientemente censurado por causa dele! E afinal... conseguem enchê-lo? Não é apenas um desenho, não é? Se tivesse escrito por baixo do meu quadro ‘isto é um cachimbo’ estaria a mentir”. 


R. Magritte - Os dois Mistérios

Em Os dois mistérios (1966), trata-se da mesma “desocularização” do objeto cachimbo e do enunciado linguístico que corta a tela (Op. cit., p.68). Seja na instância da letra, seja na instância da imagem, abre-se o dissenso, o desacordo, a diáfora, onde antes havia o arbitrário das linguagens, a convenção, o consensual. A letra interroga-se e interroga a imagem, mas ambas são capturadas no instante do seu lapso, na queda da verdade que pretenderiam instaurar. Precipita-se o abalo do estatuto ontológico. A relação entre a escritura verbal e a escritura pictórica desestabiliza, por sua vez, a relação de representação, desconstrói o valor representativo da linguagem.

O pintor indaga o significante despótico da língua. Seria pertinente atribuir à escritura/pintura magrittiana “a decepção infinita” (BARTHES, 1982, p.33) que deporá o poder do modelo ótico. Tais posicionamentos não se referem a uma metalinguagem, uma metacrítica, sim, a uma confusão ilegível que tornam letra e imagem instáveis, impelidas pela destruição de certezas e expostas a uma dispersão do signo. Ainda citando Barthes (2007), poderíamos pensar nesse processo magrittiano num fazer disparar os signos em múltiplas direções, sem ordenamento, para que, no traçado da escritura, olho e mão, desinstrumentalizados, deixem o sentido à mercê do próprio arrombamento e arranquem o pintor, a pintura e o espectador do conforto da memória visual. 


R. Magritte - Memória

 Em Memória (1945), conforme Paquet (Op. cit., p.30), obra que foi “diretamente inspirada por Giorgio de Chirico e tem em conta a vida silenciosa que a vida ainda nega”, vê-se o trabalho da memória deixando o rastro de seu próprio vazio. Um rosto de uma jovem mulher esculpido em pedra, de olhos fechados, com uma mancha de sangue na têmpora, como saísse de uma parede/caverna do tempo, na superfície frontal, um copo com água e uma maçã verde compõem a cena visual desconcentrando a atenção do espectador e desconcertando-o diante da falta de similitude entre os elementos, sem nenhuma ligação “narrativa”. Os olhos cerrados da Memória vivem sua própria escuridão, alheia à visibilidade exterior, que, desse modo faz parte de um fora inacessível.

Magritte cava o lugar da memória visual e escavando-a transforma-a num não-lugar que não retém recordação, lembranças ou reminiscências. Na superfície de suas telas, a desocularização e o caráter inorgânico da pintura apontarão a experiência visual já não mais enclausurada na ótica.

Fonte: http://psicanaliselacaniana.blogspot.com.br/2013_11_17_archive.html