domingo, 17 de março de 2013

NORMOPATIA


NORMOPATIA


Normopatia é a patologia da normalidade. A palavra vem de NORMO (normal) + PATIA (doença, sofrimento, paixão).

O termo foi criado para retratar um certo tipo de pessoa aparentemente bem adaptada e normal, sem nenhum conflito psíquico ruidoso, neurótico ou psicótico. É uma beleza de sujeito! Sério, honesto, trabalhador, cumpridor dos deveres, bom que dá gosto! Vai à missa todo domingo, confessa e comunga.

No entanto, tudo que esse sujeito faz, acaba num impasse. Ele nunca é “sim” e “não”, ele é “nim”. Não é que ele não “saia de cima do muro”: ele é o muro! Como não consegue fazer um mergulho profundo dentro de si, acaba sendo o famoso “sem sal”. Geralmente nem consegue terminar as coisas que começa. Muita iniciativa, pouca continuativa, nenhuma acabativa.

Mas por que normopatia e não normalidade? Porque é uma normalidade falsa ou apenas aparente. É uma normalidade estereotipada ou reativa decorrente de um processo de sobreadaptação defensiva. O sujeito não é aquilo que aparenta. Aquilo é apenas a blindagem com que ele se protegeu para sequer entrar em contato consigo mesmo. É que lá dentro habitam desejos inconfessáveis.

Onde encontramos essa “normalidade”? Encontramos, sobretudo, em gente refratária: aqueles que não sentem, não choram, não se condoem. Mas também vamos encontrar essa configuração psíquica entre somatizadores, desviantes sexuais, drogadictos...

Esses sujeitos possuem pensamento operatório. Pensamento operatório é aquele tipo de pensamento feito para resolver problemas, consertar coisas, trocar pneus. Se você furar o pneu do carro, precisa ter um sujeito desses do lado. Mas precisa dizer pra ele que o pneu furou, senão ele nem vê. Eles até são capazes de resolver coisas práticas. Mas para conviver e conviver com eles é dureza! Ele transita pelo mundo com uma pobreza muito grande de expressão simbólica: dá a impressão de ser um robô. É um sujeito feito para casar, mas não para namorar!

Se você for adiantado em anos, certamente, vai se lembrar do Sr. Spock, o vulcano da Jornada nas Estrelas. Ele não entendia como os humanos não se expressassem diretamente naquilo que queriam. Ele era normopata. Aliás, nem isso, ele não era humano. Nós, os humanos, não expressamos diretamente aquilo que queremos. Com exagerada freqüência, fazemos SP-Rio via Moscou. Não existe sequer uma trilha no meio do mato em linha reta. Os humanos não andam em linha reta.

O normopata anda apenas em linha reta. Uma pessoa assim só fala de coisas atuais. Dá a impressão de que não tem história nem recordações. E, se tem, nunca se refere a elas. É um sujeito com a profundidade de um pires e a cara de azulejo de parede. Se você jogar tinta, ela escorre.

Um normopata não pede ajuda. Para ele, “está tudo bem!” Se chega a pedir ajuda, é sempre para os outros: os filhos, os pais, os cônjuges... Eles é que precisam de ajuda, ele mesmo, ara, jamais! Ele não sofre nada. Se sofre, é por causa “desses aí”. Nem preciso dizer o quanto um sujeito (ou sujeita) assim foge dos compromissos consigo mesmo. Eles escondem o problema e se escondem atrás do “está tudo bem!” O mundo é que está errado, os outros é que estão errados. Com eles, está sempre “tudo bem!”

É que o neurótico (gente comum como a gente) tem queixas. O normopata, não, ele em teorias. Tudo para ele está previamente teorizado e enlatado. A vida para ele é um bolo-de-caixinha e a receita para todas as questões existenciais é sempre a mesma. Até porque, para ele, não existem questões existenciais. Um bolo-de-caixinha ou um sorvete de máquina são muito mais variados que o modo como esse sujeito enxerga a existência.

Por demonstrarem pouca capacidade afetiva, é difícil para um normopata chorar, e a impressão de que deixam é a de serem pessoas “secas”. Vários normopatas privilegiam apenas o aspecto material da vida. “Primeiro, você ganha dinheiro, depois vem os amigos!” Já ouvi de um deles, em priscas eras. É que foi removida a capacidade de sonhar e o devaneio, tão próprios, aliás, tão exclusivos da espécie humana.

De certa forma, todos somos normopatas em algum grau. O que varia é a intensidade: o botão do volume. Também como eles, muitas vezes, atravessamos a vida presos à realidade como um náufrago a uma pequena tábua de salvação. O fato é que todos nós nos agarramos à pequena tábua de salvação apenas até que apareça um barco salva-vidas. No caso em questão, na vida de um normopata, a tábua já serve de barco salva-vidas. Tudo o que ele tem é só o que ele tem e nada mais. Triste, não?

Vem cá, como isso aconteceu? Ou o quê aconteceu pra isso acontecer?

Uma das funções da Mãe é manter a constância. Constância proporciona sensação de segurança. Se o bebê experimenta Mãe como inconstante, isso gera angústia. E o bebê resolve a angústia suprimindo a Mãe e colocando no lugar dela uma parte de si mesmo. A Mãe deixa de ser o espelho gerador de confiança. Com isso, não é mais a Mãe que fascina o bebê: ele próprio se fascina.

Viram que escrevi Mãe com maiúscula. Não se trata apenas da figura física. Mãe não é figura física (com CPF e RG). Mãe é figura jurídica (tem CNPJ). O senso comum sabe que mãe não é aquela que gera, mas a que cuida. Até o senso comum sabe que ser Mãe: cuidar, amar, zelar, é mais do que simplesmente ser mãe: gerar, parir, procriar.

Daí pra frente, durante a vida, esse sujeito sempre irá substituir a outra pessoa por qualquer outro objeto harmônico toda vez que precisar sustentar sua própria fragilidade e a procura de tranqüilidade. O objetivo será sempre eliminar a tensão. Na verdade, todos queremos isso. A diferença é que o normopata quer eliminar toda tensão.

Mas o que fazer, se as relações são sempre conturbadas? O normopata não tolera isso. Ele procura quem os idealize, quem os estime como um objeto superior. Para tanto, projeta no outro sua baixa-estima: o outro não presta. Para tanto, encontra no outro sua própria imagem idealizada. Quando ele diz: Como esse sujeito é bom! – na verdade, está apenas dizendo: Como eu sou bom!

O normopata não tolera diferenças. O fato, em si, de existir a diferença é difícil de suportar. A estratégia empregada será a de achatar as diferenças entre ele e o outro. Ele só procura objetos em comum com quem possa sustentar e manter a imagem ideal de si mesmo. Imagem ideal, portanto, frágil.

Esse sujeitos são propensos à harmonia. Mas, não se enganem, é uma falsa harmonia. Como eles rejeitam a diferença, são avessos a acolher as complexidades da convivência humana, porque nessa, eles vão encontrar as diferenças que detestam. Dessa forma, evitam questões internas complexas, reduzem a vida social, e só a mantém em alta quando se trata de lugares onde possam exibir sua superioridade estereotipada. “E aí? Como vai? Tudo bem, né!” Eles mesmos perguntam, eles mesmos respondem, e ai de quem ousar responder.

O objetivo de evitar qualquer encontro mais profundo com o outro é se proteger de qualquer encontro mais profundo consigo mesmo, naquilo que nem sempre é possível querer encontrar dentro de si mesmo. Para poder se conduzir na vida sem nenhum atropelo, um normopata se refugia no pedestal que construiu, onde ele mesmo, na certa, morre de solidão. Mas fazer o quê? É o pedestal que lhe dá a garantia da distância da diferença que ele não suporta. A Igreja Católica conhece São Simeão Estilita (não estilista, stylos é pilar em grego). Ele era um asceta sírio do século V, que passou a vida em cima de uma coluna de pedra de dezessete metros de altura. Vai entender!

Daí que esses sujeitos acabem sendo enfadonhos. No casamento, geralmente, procuram um parceiro vigoroso e interessante, desde que ele não constitua um desafio à baixa auto-estima. Uma geladeira sempre procura outra geladeira; vez ou outra, procura um fogão. Os parceiros são o objeto de idealização. Mas é preciso muito cuidado: a imagem que ele faz do outro se quebra com muita facilidade. O vidro desse espelho é muito fino. É preciso sempre pisar em ovos, “pois qualquer desatenção, faça não, pode ser a gota d’água!” Para o espelho não se quebrar tem sempre que dizer “sim”. “Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela do que eu?” Nesses casos, existe sempre um espelhamento empático: como o do bebê e sua mãe. Lembram-se que o bebê não mama leite? O bebê mama olhar. Mas o bebê cresce, não é!

Essas pessoas não suportam críticas nem julgamentos. Diante de qualquer crítica, desponta vigorosa a agressividade. Toda vez que o espelho se quebrar, surge a ansiedade, ansiedade gera vazio interno, vazio interno produz agressividade. Ataques de ansiedade geram descarga de pânico. Esse pânico é a raiva projetada a fim de restaurar a harmonia.

Esses ataques, panicosos ou agressivos, removem a alteridade diferenciada. O outro (diferente) é uma ameaça que precisa desaparecer. O normopata faz tábula rasa da vida. Porém, responda, há castigo pior? Esse procedimento empobrece os sentimentos, a criatividade, a vida. Desaparece a expressão criadora. Desaparece a capacidade de luta. Lutar implica reconhecer diferenças. O normopata se refugia com medo da diferença. Que sujeito “sem sal”!

O homem, antes de ser um animal racional (como propôs Aristóteles) é um animal simbólico. O homem e o castor fazem a mesma coisa: diques e pontes. O homem e o joão-de-barro fazem a mesma coisa: casas populares. O homem e o macaco procriam: geram prole prolixa! A diferença é que o homem convida para a inauguração, corta a fita, chama a banda, faz churrasco, mostra a casa para os amigos, dá nome aos filhos e sonha com o que eles serão quando crescerem. Nenhum outro animal faz isso.

O homem cria símbolos. O símbolo vem da capacidade de sonhar e do devaneio. A conseqüência da ausência de símbolos se traduz numa ausência de afeto e num sério transtorno cognitivo. Para quem lida com a questão religiosa, está aí a raiz do materialismo ateu. O normopata é um ateu, mas nem isso ele sabe de si.

Perdoe-me o pleonasmo, mas o homem é uma singularidade única. Você é uma singularidade única! O que faz de você “essa singularidade”, o que faz você ser você e não outro, a sua impressão digital da alma é a sua capacidade de sonhar e de se expressar cognitiva e afetivamente através de símbolos.

Você é singular. Não existem estatísticas a não ser para a matemática. A normalidade não tem nada a ver com estatística. A normalidade só pode ser concebida de acordo com a lógica interna de cada um, na sua relação consigo mesmo e com os outros.

Mas, e agora, como definir o que é normal? Direto para o início da vida! No início da vida, você não tinha recursos para distinguir o normal e o anormal. Aliás, naqueles gloriosos dias, você sequer tinha recursos para distinguir realidade e alucinação.

O primeiro passo da criança diante da fome é alucinar o seio. Ela vive um estado inicial de fusão entre ela e a mãe. A mãe e ela são uma coisa só. Aos poucos, ela vai perceber o seio como separado dela. Isso acontece depois de muitas e sucessivas experiências de satisfação e frustração. Essa alternativa – satisfação-frustração – possibilita a construção de uma noção de realidade. Começa bem cedo a mais importante aquisição da nossa espécie: a distinção entre eu e não-eu, entre eu e outro. Sim, porque no comecinho, tudo é só “Eu”. Muita gente permanece assim até o finzinho!

Quando essa distinção não é feita, a criança continua pensando que ela e mãe são uma coisa só. Conseqüência Nº 1: o mundo e ela são uma coisa só. Conseqüência Nº 2: o mundo tem de se adaptar a ela e fazer só o que ela quer. Vocês conhecem pessoas que só aceitam o mundo do jeito delas?

A primeira lei do pensamento é essa: tudo o que acontece é percebido e tudo o que é percebido deixa rastro. Aristóteles dizia que nada está no intelecto sem que primeiro não tenha passado pelos sentidos. A gente percebe até quando dorme: é comum sonhar com campainha quando o relógio toca.

Portanto, se algo aconteceu e não deixou rastro, alguma interferência muito séria houve. Algo entrou aí, nesse meio, e interceptou a comunicação de tal forma que, você sabe que deveria estar, mas não está. Quando a interferência é muito séria, ocorre da marca ser apagada antes de ser produzida. Nesse caso, o rastro do percebido não chegou a ser incluído para depois ser excluído. Ele não é nem incluído nem excluído, e nem por isso deixa de ser. Quando isso acontece, o que fica no lugar é um vazio.

A princípio, existem duas realidades: a realidade externa e a interna, o mundo de fora (que chamamos de “realidade”) e o mundo de dentro (que chamamos de “fantasia”).

Mas, agora, nós sabemos que existe uma terceira realidade. Primeira realidade: a interna. Segunda realidade: a externa. Terceira realidade: o vazio. O vazio é o externo que não virou interno. Ele ocupa tanto espaço e é tão denso que dá até pra cortar com faca.

O normopata não confunde os dois mundos: interno externo. Para ele, os limites desses mundos são muito claros, até porque, para ele, o que existe é só o mundo externo. O mundo interno, povoado de desejos e fantasias, não existe. “É coisa de quem não tem o que fazer!” É que ele vive no terceiro mundo: o vazio. Ele se aloja no vazio. Como um caramujo que carrega a concha e se protege, mas sozinho, dentro dela.

A realidade interna é suprimida. A realidade externa é super-investida de modo compensatório. Na verdade, compensatório, do quê? Da perda das associações. Porque as associações vão trazer lembranças, as lembranças trarão diferenças, e as diferenças incomodam tremendamente. E é disso que o normopata foge: das lembranças e das diferenças. “Para mim, só interessa o presente, o hoje.” “Quem vive de passado é museu.” “Eu não me lembro de nada” (Um caso sério de amnésia!) “Só lembro daquilo que eu quero.” (Chave de disjuntor?) Quanto mais frágil o objeto blindado, maior há de ser a blindagem. Não se lembrar de nada é uma boa blindagem.

Pois é, que bom se fosse assim! Que bom se a gente tivesse o controle onipotente de tudo! Seria tão fácil fazer regime! Mas a vida não é assim.

Qual é o resultado da normopatia?

Resultado para a vida emocional
O sujeito funciona como um robô impessoal e estereotipado, se tratando sempre na 3ª pessoa (a gente!). Há quem atenda ao telefone e responda: “Ele!”, no lugar de “Eu!” Contam que Edinho, filho do Edson Arantes do Nascimento, um dia, abriu a porta e gritou: Mãe, o Pelé chegou! Era tamanha a distância entre eles que o menino conhecia o Pelé da TV, mas não o pai. O resultado...

Resultado para o corpo
Angústias difusas: sobressalto, inquietude, ansiedade expectante. Insônia, vertigens locomotoras, agorafobia ou claustrofobia, maior sensibilidade à dor, afecções psicossomáticas e alimentares.

Resultado para as relações
Casamentos desastrados já na lua-de-mel. Empregos e faculdades que começam e não vão em frente. Alguém traduziu isso assim: “Muita iniciativa, pouca continuativa e nenhuma acabativa!” Retração narcísica e embotamento afetivo. Desinteresse pela vida, por tudo e por todos. Perda do sentido da transcendência (tudo é só aqui e agora).

A maior tarefa para quem acompanha um sujeito assim é ajudá-lo a construir a própria história. Construir mesmo, entende? Há pessoas além do peso e da idade, mas sem nenhuma história pessoal. É preciso colar as figurinhas no álbum. Em muitos casos, é preciso, até, inventar as figurinhas para serem coladas. Dá uma canseira! Eu brinco sempre que, geralmente, as pessoas nos procuram para desatar os nós. Nesses casos, diante de um normopata, a gente tem de inventar a corda.

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