sábado, 29 de março de 2014

Emma Bovary e a realidade paralela...

Emma Bovary e a realidade paralela


A personagem mais famosa de Flaubert criava sonhos e imagens românticas para preencher o vazio de uma vida repleta de insatisfações; crises de epilepsia e alucinações teriam feito o autor pensar na força psíquica da fantasia


                             

Considerada a obra mais importante do francês Gustave Flaubert, Madame Bovary não tem nada de um romance de suspense moderno. Trata-se da história banal de uma mulher mal casada que trai o marido, o arruína e acaba se suicidando, por ter se perdido, perseguindo quimeras inspiradas em romances “água com açúcar”. De onde vem, então, o fascínio exercido por essa mulher cuja única particularidade é sonhar com aventuras maravilhosas, enquanto leva uma vida comum? A descrição de seus estados de espírito é tão precisa que foi forjado um termo para designar o mal que a consome: o bovarismo.O ensaísta Jules de Gaultier propôs esse termo em dois livros sucessivos: primeiro, em Le bovarysme, la psychologie dans l’oeuvre de Flaubert (O bovarismo, a psicologia na obra de Flaubert), de 1892, e em seguida em Le bovarysme, essai sur le pouvoir d’imaginer (O bovarismo, ensaio sobre a capacidade de imaginar), de 1902: “Emma personificou essa doença original da alma humana, para a qual seu nome pode servir de rótulo, se entendermos por ‘bovarismo’ a faculdade que faz o ser humano conceber a si mesmo de outro modo que não aquele que é na verdade”. Ou seja, o bovarismo consiste em “se imaginar diferente do que se é”. Essa capacidade remete não a uma fraqueza de caráter, mas a um funcionamento psicológico, típico da espécie humana.Ao definir o bovarismo como “capacidade de imaginar a si mesmo melhor do que se é” (e não apenas diferente).Podemos considerar que o bovarismo consiste em um desdobramento da vida consciente, entre imaginário e realidade. Por ocasião de suas crises epiléticas (ver quadro na pág. 69), enquanto alucinava e se via invadido por diversas sensações, Flaubert parecia manter a razão, ao menos enquanto não desmaiava. Ele fala disso em suas cartas: “Havia dentro de meu pobre cérebro um turbilhão de ideias e imagens nas quais eu tinha a sensação que minha consciência, que meu ser afundava, como uma nau sob a tempestade. Mas eu me agarrava à razão. Ela dominava tudo, apesar de sitiada e atacada”.Existem dois caminhos no pensamento humano: o das sensações ordinárias, da realidade, e o de um universo produzido como se fosse um paralelo do outro. O escritor tinha consciência do risco de se perder no mundo das alucinações e da importância de distingui-lo da inspiração criadora, voltada para o real. Onde estava a catástrofe extraordinária que a perturbava? E ela ergueu a cabeça, olhando em volta de si, como que à procura da causa do que a fazia sofrer.” Flaubert, ao contrário, tinha profunda consciência dessa dor – conseguiu catalisá-la em sua obra.

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