terça-feira, 18 de março de 2014

Sobre a neutralidade e a abstinência dos psicanalistas...

 

Sobre a neutralidade e a abstinência dos psicanalistas


Cada vez mais profissionais têm se posicionado publicamente, assumindo um lugar de “suposto saber social”


                                           
Christian Ingo Lenz Dunker

Há tempos tenho esta conversa com meu amigo Ricardo Goldenberg sobre psicanalistas que participam da cena pública. Para alguns isso representa um problema, afinal, analisantes ficam sabendo “o que você pensa”, o que atrapalharia a transferência em curso nos tratamentos. 


Efeitos de sugestão, gerados pela fala pública de analistas, produziriam indesejáveis identificações fazendo com que a neutralidade, imprescindível para a cura, fosse devassada. Suspender seus próprios juízos morais e estéticos, colocar seus valores entre parênteses e jamais impingir ao paciente sua própria visão de mundo, nem mesmo aquela que supostamente seria congruente com a da psicanálise, como a da ciência, é o primeiro mandamento de psicanalistas. Contra esta crítica lembramos que há uma separação entre a pessoa do analista, que tem opiniões e interesses ordinários como todo mundo, e a sua função, baseada no desejo que lhe é próprio, em sua contratransferência analisada e em tudo o mais que chamamos de ética da psicanálise.



Ocorre que esta diferença, sabida e praticada pelos psicanalistas, é justamente o que a neurose de transferência desconhece. Se nossos pacientes estivessem imunes a este tipo de confusão eles teriam se curado. Portanto, para preservar a eficácia da cura devíamos nos abster do espaço público não especializado. Mas, agindo assim, contrariamos a atitude universalista e intensamente intrusiva em termos culturais, tanto de Freud, que se posicionava sobre assuntos como guerra, criminologia ou pintura renascentista, quanto de Ferenczi, que foi ministro da Saúde da Hungria, e ainda de Winnicott ou Dolto, que falavam em programas de rádio, e também de Lacan, que discutia abertamente com quase toda a cultura francesa. Sem falar em gente como Reich, que pregava abertamente a revolução, social e sexual.



Contra-argumento: a atitude de nossos antecessores não conta tanto neste ponto. Eles estavam criticando o consenso social, apresentando a psicanálise ao mundo e lutando contra sua moral sexual civilizada, feita de preconceitos e ignorâncias em matéria psicológica. Hoje o mundo está excessivamente abastecido disso. Por isso muitos analistas estariam fazendo o contrário: a partir do reconhecimento que galgam como clínicos começam a opinar sobre tudo e todas as coisas, como se estivessem no lugar de um suposto saber social, que os autoriza a dizer coisas em nome da psicanálise. 



Aqueles que dão aulas em universidades, escrevem e falam profissionalmente ou se dedicam à divulgação de ideias psicanalíticas na cultura estariam usando ideias psicanalíticas fora de lugar contribuindo para a psicologização da cultura para a psicologização da psicanálise. Isso submete certos analistas a uma representação social com a qual eles não concordam. Aqui começa o cântico dos xamãs verticais que querem escrutinizar “a” verdadeira psicanálise, acusando os que participam do debate público de estarem “vendidos ao sistema”, traindo assim nosso pacto de pequeno grupo de resistência cultural. 



Contra os perigos da massificação argumento que “o” ponto de vista da psicanálise parece tão múltiplo e diverso quanto “as” opiniões dos psicanalistas. E quem não quer discuti-las a céu aberto é porque teme perder os votos de cabresto de seu clube doméstico. Em suma, muitos psicanalistas, mas não todos, com seu sistema arcaico de formação, com seu cultivo de autores canônicos e suas instituições marcadas por formas carismáticas de poder, acabaram herdeiros da antiga figura do intelectual. Para o bem e para o mal. E mesmo assim não querem pagar a conta da responsabilidade social que isso traz consigo, em um país como o Brasil.

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